domingo, 9 de dezembro de 2007

Os Falsários Que Enganam a Ciência



Fraude com fóssil
Mostra como cientistas
Sérios podem ser induzidos a
Erros grosseiros






O maior vexame para um cientista é reconhecer ter sido engabelado por uma fraude. Estão nessa situação os paleontólogos Xing Xu, do Instituto dePaleontologia Vertebrada e Paleoantropologia de Pequim, e Philip Currie, do Museu de Paleontologia de Alberta, no Canadá. Há duas semanas, a prestigiada revista científica inglesa Nature demonstrou de modo categórico que ambos fizeram papel de bobo. Xing e Currie são autores da descrição de um dos fósseis mais sensacionais já descobertos, o Archaeoraptor liaoningensis. Os ossos comprovariam nada menos que os pássaros atuais realmente descendem dos dinossauros. A Nature demonstrou que, longe de ser o avô dos passarinhos, o objetivo do estudo é apenas uma peça forjada por vigaristas vulgares. A revelação não só carbonizou a reputação dos dois paleontólogos como também chamuscou outra sólida instituição do mundo da ciência, a revista americana National Geographic, da centenária National Geographic Society, cuja versão em português é produzida pela Editora Abril. Há pouco mais de um ano, a National Geographic colocou na capa de uma recriação artística do animal e deu-lhe crédito como o elo perdido entre répteis e aves.
A fraude do Archaeoraptor é exemplar de como cientistas sérios e publicações respeitáveis podem ser enganados por espertalhões no competitivo universo da paleontologia. O autor do estudo publicado na Nature, o especialista Timothy Rowe, da Universidade de Texas, submeteu o fóssil a uma tomografia computadorizada e provou que a teoria do elo perdido dinossauro-ave não passa de um quebra-cabeça de 88 peças montado por agricultores chineses com pedaços de fósseis variados. “Partes de pelo menos duas espécies novas foram combinadas para aumentar o valor comercial da fraude”, escreveu Rowe. Da China, o fóssil forjado foi levado por contrabandistas para os Estados Unidos. Lá foi comprado pelo paleontólogo amador Steven Czerkas por 80 000 dólares numa tradicional feira de fósseis em Tucson, no sudoeste do país. Intrigado com o material ele mostrou ao canadense Currie. A primeira providência do cientista foi avisar a National Geographic, da qual é consultor. A segunda foi convocar um especialista do governo chinês, Xing Xu, pois temis que o fóssil fosse contrabandeado. Ambos dedicaram apenas dois dias ao estudo do material esaíram alardeando a nova descoberta.
O achado parecia sensacional demais para ser ignorado. Um ser emplumado que viveu na China 125 milhões de anos atrás, com aparência entre uma galinha e o velociráptor, aquele dinossauro perverso do filme Jurassic Park. A mentira foi pega pelo rabo, literalmente, um mês depois da publicação. Em pesquisas mais cuidadosas feitas na China, Xu descobriu que a cauda do Archaeoraptor era na verdade de outro bicho, um dromeossauro. Alerta, a National Geographic mandou investigar a história e, em outubro, publicou um extenso artigo mostrando como pôde ser enganada. Fraudes existem em todos os ramos da ciência, mas a arqueologia e a paleontologia são presas especialmente fáceis para os espertalhões. Isso ocorre, em parte, por razões mercadológicas. Há enorme demanda alimentar por amadores milionários, cientistas e museus, mas faltam peças autenticadas. O fóssil e as peças arqueológicas de valor científico são extraídos de sítios arqueológicos supervisionados. Mas existe fartura de fósseis extraídos sem rigor. Desprovidos de origem comprovada, eles precisam de aval de algum cientista para ter o valor aumentado. “Em geral, os pesquisadores se encantam com as peças e não se preocupam mais nada”, disse a VEJA Oscar Muscarella, pesquisador do Metropolitan Museum of Art de Nova York e autor de um livro sobre falsificação de objetos arqueológicos. Ele calcula que coleções respeitáveis de negociantes de arte e casas de leilões internacionais tenham no mínimo 1000 objetos forjados ou suspeitos apenas em sua área de atuação, a arqueologia no Oriente Médio. Os cientistas também são movidos pela ansiedade de mostrar serviço. O trabalho na paleontologia e na arqueologia é, por sua natureza, de resultados lentos e depende bastante do acaso. Quando tem algo promissor, o estudioso é tentado a atropelar as regras básicas da pesquisa científica para divulgar sua descoberta. O suposto fóssil do Archaeoraptor enganou os pesquisadores por ser composto de peças originais, de antiguidade incontestável. Esse é um artifício usual entre os falsificadores de peças antigas. Uma múmia trajada de roupas douradas, confiscada pela polícia paquistanesa de um contrabandista, está agora depositada no Museu Nacional de Karachi no Paquistão. O arqueólogo Ahmed Hasan Dani, da Universidade de Islamabad, apressou-se em dizer que a múmia – com vestes de estilo egípcio e repousando em caixão de madeira com entalhes em escrita cuneiforme – era a de uma princesa que viveu 600 anos antes de Cristo. Dois meses antes de aparecer no Paquistão, a múmia tinha sido oferecida a um colecionador americano por 11 milhões de dólares. Exames revelaram que se tratava do corpo de uma mulher mumificada há apenas dois anos – e já em estado de decomposição.
O esquife que dava ar de autenticidade à múmia era realmente antigo, tinha 250 anos. A arte da falsificação histórica está Ana habilidade em misturar peças velhas e novas. Em ambos os casos, o embuste foi desfeito com a utilização de tomografia e de análises químicas mais precisas, que só
recentemente entraram para o arsenal dos pesquisadores. Nem sempre a descoberta da fraude leva à imediata desmoralização das peças e das teorias elaboradas em torno delas. Vinte anos atrás, pesquisadores de vários países usaram dois pratos de lápis-lazúli atribuídos aos sumérios para traçar teorias acerca da cultura, da topografia e das táticas bélicas na Mesopotâmia cerca de
3000 anos a.C. as peças tiveram posteriormente a autenticidade contestada, mas nem por isso perderam o lugar de honra numa coleção particular de Nova York e no Museu da Bíblia, em Jerusalém.

Ana Santa Cruz
Revista VEJA

11-04-2001, págs 112-113

Nota:
Vale a pena relembrar que a ciência nem sempre tem razão.

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